segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Viva: É Carnaval!


Distintas formas de ser brasileiro nos antigos carnavais de Porto Alegre

 

Dolzira meteu os pés nas sandálias novinhas, já ouvindo as simultâneas sonoridades provenientes do passeio público – gargalhadas, motores e marchas-rancho. Faceira e despercebida, cruzaria a porta intencionalmente deixada entreaberta, se não houvesse sido surpreendida por Maurício, velho alfaiate da Rua Cauduro:

– Toma aqui, Zira; leva uns cobres pra comprar lança-perfume. E te comporta, ouviu?

Dolzira Padilha, empregada doméstica, negra, 81 anos, narrou suas histórias de foliona a um grupo de historiadores em 1991. Quando moça, ela morava na Colônia Africana; aos 18 anos, empregou-se na casa de um casal de alfaiates judeus, Maurício e Adélia, no bairro Bom Fim.  Pouca gente sabe, mas a tal Colônia Africana, era uma região de Porto Alegre, formada no imediato pós-abolição e onde fixaram residência muitos libertos. Ao longo da primeira metade do século XX, a “colônia” permaneceu como um dos territórios referenciais para os carnavais da cidade. Por sorte, Dolzira contava com o aval dos patrões toda vez que queria participar dos folguedos. E haja lança-perfumes! Naquele tempo, o líquido era presença obrigatória durante os dias consagrados a Momo.
Anúncio de Lança Perfumes. Jornal "Correio do Povo" 26/02/1938

 Os carnavais porto-alegrenses realizados entre as décadas de 1920 e 1940, muitos deles vivenciados por Dolzira, eram marcados pela multiplicidade das formas de participar da folia, bem como pela diversidade de identidades dos sujeitos que se apropriavam da festa. Nas ruas e avenidas do Bom Fim e outros bairros, como a Cidade Baixa – região também associada à presença negra – podia-se ver os chamados blocos humorísticos, perfeitamente inseridos em uma tradição trocista, caracterizada pela realização de críticas e deboches aos governantes e a fatos do cotidiano.
                                          Bloco "Sinfonia dos Guascas", 1937.

Em outro ponto da cidade, nos bairros Navegantes e São João, era possível assistir os desfiles de senhorinhas casadoiras, filhas de imigrantes alemães e italianos, empoleiradas em elegantes carros de tolda arriada ou (mais frequentemente) em abarrotados caminhões, aproveitando secretamente os dias de carnaval para atrair o futuro marido.

                                          Desfile de caminhão, 1948.

Já nas ruas do centro de Porto Alegre, podia-se ver grupos de homens vestidos de mulher, frequentemente criticados pela imprensa e sempre vigiados pela polícia, expressando ambiguidades de gênero e afrontando as regras identitárias heterodominantes, já que certamente entre eles circulavam muitos rapazes que encontravam nos dias consagrados a Momo um ensejo para expressar (e exercitar) certas identidades reprimidas.











Travestidos, 1947 e 1948.



E por toda a cidade, havia ainda uma infinidade de jazz bands, formadas por brancos e negros, animando as matinés nos cinemas de calçada, os bailes e as noitadas nas agremiações privadas. Seus músicos eram responsáveis por executar em Porto Alegre as últimas novidades do carnaval carioca: polcas, maxixes, mazurcas, tangos e marchas-rancho. Naquele tempo, como se pode perceber, nem só de samba eram feitos os dias de folia.

Jazz Band "Espia Só".

Mais do que uma festa nacional com sentido unívoco – cabe lembrar o quanto ainda é recorrente o clichê de ver o carnaval apenas como um “símbolo de brasilidade” ou mera manifestação da “identidade brasileira”– os dias consagrados a Momo colocavam em contato e em diálogo sujeitos muitos diferentes e que expressavam significados vários por meio de maneiras distintas de participar da folia. Afinal, os incansáveis foliões, entre uma cheirada e outra de lança-perfumes, acabavam inventando formas muito variadas de ser brasileiro.

Texto: Marcus Vinicius de Freitas Rosa (mestre em História Social pela UFRGS e doutorando em História Social da Cultura pela UNICAMP.)
 


Nenhum comentário:

Postar um comentário