Distintas formas de ser brasileiro nos antigos carnavais de Porto Alegre
Dolzira meteu os pés nas sandálias novinhas, já ouvindo as simultâneas
sonoridades provenientes do passeio público – gargalhadas, motores e
marchas-rancho. Faceira e despercebida, cruzaria a porta intencionalmente deixada
entreaberta, se não houvesse sido surpreendida por Maurício, velho alfaiate da
Rua Cauduro:
– Toma aqui, Zira; leva uns cobres pra comprar lança-perfume. E te
comporta, ouviu?
Dolzira Padilha, empregada doméstica, negra, 81 anos, narrou
suas histórias de foliona a um grupo de historiadores em 1991. Quando moça, ela
morava na Colônia Africana; aos 18 anos, empregou-se na casa de um casal de
alfaiates judeus, Maurício e Adélia, no bairro Bom Fim. Pouca gente sabe, mas a tal Colônia Africana, era uma região de Porto Alegre, formada no imediato
pós-abolição e onde fixaram residência muitos libertos. Ao longo da primeira
metade do século XX, a “colônia” permaneceu como um dos territórios
referenciais para os carnavais da cidade. Por sorte, Dolzira contava com o aval
dos patrões toda vez que queria participar dos folguedos. E haja
lança-perfumes! Naquele tempo, o líquido era presença obrigatória durante os
dias consagrados a Momo.
Anúncio de Lança Perfumes. Jornal "Correio do Povo" 26/02/1938
Bloco "Sinfonia dos Guascas", 1937.
Em outro ponto da cidade, nos
bairros Navegantes e São João, era possível assistir os desfiles de senhorinhas
casadoiras, filhas de imigrantes alemães e italianos, empoleiradas em elegantes
carros de tolda arriada ou (mais frequentemente) em abarrotados caminhões, aproveitando
secretamente os dias de carnaval para atrair o futuro marido.
Já nas ruas do centro de Porto
Alegre, podia-se ver grupos de homens vestidos de mulher, frequentemente
criticados pela imprensa e sempre vigiados pela polícia, expressando
ambiguidades de gênero e afrontando as regras identitárias heterodominantes, já
que certamente entre eles circulavam muitos rapazes que encontravam nos dias
consagrados a Momo um ensejo para expressar (e exercitar) certas identidades
reprimidas.
Travestidos, 1947 e 1948.
E por toda a cidade, havia ainda
uma infinidade de jazz bands, formadas
por brancos e negros, animando as matinés nos cinemas de calçada, os bailes e as
noitadas nas agremiações privadas. Seus músicos eram responsáveis por executar
em Porto Alegre as últimas novidades do carnaval carioca: polcas, maxixes, mazurcas,
tangos e marchas-rancho. Naquele tempo, como se pode perceber, nem só de samba
eram feitos os dias de folia.
Jazz Band "Espia Só".
Mais do que uma festa nacional
com sentido unívoco – cabe lembrar o quanto ainda é recorrente o clichê de ver o
carnaval apenas como um “símbolo de brasilidade” ou mera manifestação da
“identidade brasileira”– os dias consagrados a Momo colocavam em contato e em
diálogo sujeitos muitos diferentes e que expressavam significados vários por
meio de maneiras distintas de participar da folia. Afinal, os incansáveis
foliões, entre uma cheirada e outra de lança-perfumes, acabavam inventando formas
muito variadas de ser brasileiro.
Texto: Marcus Vinicius de Freitas Rosa (mestre em História Social pela UFRGS e
doutorando em História Social da Cultura pela UNICAMP.)
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